Das Páginas à Tela: Ensaio sobre a Cegueira de Saramago e sua Adaptação

Adaptar um livro para o cinema nunca é tarefa simples. É como traduzir uma alma: exige respeito, sensibilidade e uma boa dose de ousadia. Quando o texto original é de José Saramago – com seu estilo único, quase sem pontuação, narrativas densas e reflexões filosóficas – o desafio se torna hercúleo. Ensaio sobre a Cegueira, publicado em 1995, é uma dessas obras que transcendem o enredo: um verdadeiro tratado sobre a fragilidade humana, a ética em colapso e a cegueira moral de uma sociedade em ruínas.

No contexto literário contemporâneo, poucos livros alcançaram tanta profundidade simbólica e repercussão crítica quanto este. Ao retratar uma epidemia de cegueira branca que afeta uma cidade inteira, Saramago nos obriga a enxergar além dos olhos – a observar o que somos quando despidos de regras, status e convenções sociais.

Mas o que acontece quando esse universo metafórico precisa ganhar imagem, som e movimento? O que se perde quando a imaginação do leitor dá lugar à lente do diretor? E o que se ganha quando a metáfora visual é potencializada na tela?

Neste ensaio, convidamos você a mergulhar na jornada “da página à tela”, analisando não só o processo de adaptação, mas também os dilemas, limites e possibilidades de transformar uma obra-prima literária em cinema. Prepare-se: esta não é uma história sobre cegos – é sobre como nós, muitas vezes, escolhemos não ver.

Uma Obra-Prima de José Saramago

José Saramago, prêmio Nobel de Literatura em 1998, foi um dos escritores mais singulares da língua portuguesa. Nascido em Portugal, cultivou um estilo que desafiava convenções: frases longas, pontuação escassa, diálogos diluídos no fluxo do texto – quase como se nos convidasse a ouvir sua prosa em voz baixa, num fôlego só. Lê-lo é mergulhar num labirinto onde a forma e o conteúdo caminham juntos.

Em Ensaio sobre a Cegueira, publicado em 1995, Saramago constrói uma fábula perturbadora. Uma epidemia de cegueira súbita e inexplicável atinge uma cidade sem nome. As autoridades, temendo o contágio, isolam os infectados em quarentena. O caos se instala, revelando o colapso das estruturas sociais, a brutalidade humana e a tênue linha entre civilização e barbárie.

A cegueira – sempre “branca”, como um apagamento – não é apenas física. É, acima de tudo, simbólica. Representa a falência ética, a indiferença coletiva, o egoísmo que contamina. Saramago propõe uma pergunta incômoda: o que somos quando ninguém está olhando?

Sua linguagem minimalista, quase árida, reforça a densidade da obra. A ausência de nomes dos personagens, a impessoalidade do cenário e a escolha estética da prosa fragmentada criam um desconforto deliberado – um convite à reflexão profunda.

Mais do que um romance distópico, Ensaio sobre a Cegueira é uma lente crítica sobre o humano. Uma obra para ser lida com os olhos… e sentida com a consciência.

A Adaptação Cinematográfica
Fernando Meirelles em Cena

Em 2008, Ensaio sobre a Cegueira ganhou vida nas telas pelas mãos do diretor brasileiro Fernando Meirelles, conhecido internacionalmente por Cidade de Deus. A escolha não foi por acaso: Meirelles já havia demonstrado domínio sobre realidades cruas e narrativas que mesclam o humano e o social de forma intensa. A adaptação foi uma coprodução internacional, com roteiro assinado por Don McKellar e um elenco global liderado por Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover e Alice Braga.

Visualmente impactante, o filme recorre a uma fotografia propositalmente desbotada, quase lavada – traduzindo em imagem a “cegueira branca” descrita no livro. A direção de arte aposta no desamparo dos ambientes e na degradação progressiva do cenário, enquanto a trilha sonora minimalista sustenta a tensão quase insuportável da narrativa.

Adaptar uma obra tão simbólica, onde o que não é dito é tão importante quanto o que é mostrado, foi um desafio colossal. Como representar o anonimato dos personagens, a ausência de nomes, o fluxo de consciência, sem cair na superficialidade? Meirelles optou por preservar o essencial, ainda que, inevitavelmente, tenha deixado de fora parte da densidade filosófica do texto.

A recepção foi polarizada. Enquanto alguns críticos aplaudiram a ousadia estética e a fidelidade ao espírito da obra, outros acusaram o filme de ser excessivamente sombrio ou inacessível. Mas, como o próprio Saramago disse ao assistir à estreia: “Agora vi o que escrevi.”

Afinal, adaptar Saramago é arriscar-se – e Meirelles, sem dúvida, arriscou.

Da Página à Tela
Convergências e Divergências

A adaptação de Ensaio sobre a Cegueira conseguiu, em muitos aspectos, manter-se fiel ao espírito do livro. A metáfora da cegueira como crítica social, o clima opressor e a desumanização progressiva estão todos lá. A escolha de manter os personagens sem nomes – como “a mulher do médico” ou “o primeiro cego” – preserva a ideia de anonimato universal, central na obra de Saramago. A atmosfera visualmente turva do filme reforça a sensação de confusão e perda de identidade que marca o romance.

Por outro lado, algumas perdas são inevitáveis. A narrativa de Saramago é marcada por uma ironia sutil, por longos fluxos de pensamento e reflexões filosóficas que simplesmente não se traduzem com a mesma força no cinema. O livro exige do leitor um envolvimento intelectual; já o filme, apesar de visualmente impactante, recorre mais à visceralidade e à emoção imediata.

Fernando Meirelles também tomou algumas liberdades criativas – como intensificar cenas de violência ou dar mais protagonismo visual à mulher do médico – para garantir ritmo e impacto. Essas escolhas, ainda que necessárias ao formato cinematográfico, por vezes simplificam a complexidade dos personagens e das relações humanas que o livro explora com profundidade.

Ler Ensaio sobre a Cegueira é um exercício de introspecção e inquietação silenciosa. Assistir à sua adaptação é encarar essa mesma inquietação com os olhos bem abertos. Ambas as experiências são intensas – mas caminham por trilhas sensoriais distintas.

O Valor das Adaptações
Aproximação ou Redução?

Adaptações literárias sempre despertam debates apaixonados. Para uns, são pontes que aproximam o grande público de obras complexas; para outros, representam inevitáveis reduções – recortes de um universo que só se revela por completo na página escrita. No caso de Ensaio sobre a Cegueira, essa tensão é evidente: transformar a densidade filosófica de Saramago em imagens exige escolhas difíceis, e toda escolha implica perdas.

Mas será justo medir uma adaptação apenas pelo que ela deixa de fora? Em muitos casos, o cinema atua como porta de entrada, despertando curiosidade em leitores que talvez nunca teriam contato com o livro. A imagem, por vezes, limita – concretiza aquilo que o leitor imaginaria de mil formas. Mas ela também pode expandir: com sons, cores e silêncios, o filme pode criar camadas de significado e sensibilidade.

No cenário cultural contemporâneo, onde o tempo escasso e o apelo visual reinam, adaptações cumprem um papel fundamental. Elas mantêm vivas histórias que, sem isso, poderiam cair no esquecimento. Mais do que réplicas, podem ser interpretações – com identidade própria e relevância artística.

Portanto, talvez a pergunta não seja se adaptações aproximam ou reduzem, mas sim como elas dialogam com a obra original. Quando bem-feitas, elas não competem com o livro – convidam a lê-lo. E, nesse convite, reside sua maior virtude: transformar espectadores em leitores.

Reflexão Final
Ainda Estamos Cegos?

Passadas quase três décadas desde a publicação de Ensaio sobre a Cegueira, a pergunta que ecoa é incômoda e atual: ainda estamos cegos? Em um mundo saturado de informação, imagens e discursos, seguimos tropeçando na indiferença, na desigualdade e na apatia coletiva. A epidemia branca imaginada por Saramago parece menos ficção e mais metáfora crua de nossas miopias morais e sociais.

A cegueira de que fala o autor não é oftalmológica – é ética. É o desvio do olhar diante da injustiça, é o conformismo diante do caos, é o egoísmo travestido de normalidade. Nesse sentido, Saramago foi mais que um visionário; foi um cronista do óbvio ignorado, alguém que ousou dizer aquilo que preferimos não enxergar.

Hoje, em tempos de redes que nos conectam, mas também nos alienam; de crises ambientais, políticas e humanitárias tratadas como ruído de fundo; de bolhas de opinião que nos impedem de ver o outro – a cegueira persiste. Não porque faltam olhos, mas porque falta coragem de usá-los para ver o que realmente importa.

O que ainda não conseguimos – ou não queremos – ver? Talvez a resposta esteja menos no mundo e mais no espelho. Como leitores, espectadores e cidadãos, seguimos sendo desafiados por Saramago a abrir os olhos – não apenas para fora, mas para dentro.

A pergunta, afinal, permanece como ferida aberta: e se fôssemos nós os próximos a perder a visão?

Referências e Indicações de Leitura/Visualização

Para quem deseja mergulhar mais fundo no universo de Ensaio sobre a Cegueira e suas múltiplas interpretações, há uma rica variedade de fontes que ampliam a experiência além da página e da tela.

Comece, naturalmente, pelo romance original:

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras. Um clássico incontornável da literatura contemporânea.

Blindness (2008), dirigido por Fernando Meirelles, é a adaptação cinematográfica internacional da obra, com estética ousada e elenco de peso.

Entrevistas com José Saramago, disponíveis em vídeos, documentários e transcrições, revelam a visão crítica do autor sobre a humanidade – e sobre sua própria obra adaptada.

Para os estudiosos da transposição de linguagens, a leitura de Linda Hutcheon em A Theory of Adaptation é fundamental. Ela oferece ferramentas para entender as escolhas (e omissões) em adaptações literárias.

Críticas publicadas em veículos como The Guardian, Folha de S.Paulo e Revista Cult trazem análises qualificadas sobre o livro e o filme, com diferentes visões e enfoques.

Para complementar, explore podcasts e vídeos do YouTube como os do canal Literatour e Formiga Elétrica, que oferecem conteúdo acessível, inteligente e bem embasado.

Por fim, aprofunde-se em outras obras de Saramago que dialogam com temas semelhantes: Ensaio sobre a Lucidez e A Caverna são ótimas continuações reflexivas.

Cada referência é uma lente a mais – para ver o que tantos ainda fingem não enxergar.