Vozes Marginalizadas: A Representação das Periferias na Literatura de Conceição Evaristo
A literatura, quando legítima, tem o poder de refletir o mundo real com suas dores, belezas e contradições. No Brasil, um dos nomes mais contundentes nesse espelho é o de Conceição Evaristo, escritora mineira, mulher negra, nascida em uma favela de Belo Horizonte, cuja obra ressoa como grito e acalanto das vozes historicamente silenciadas.
Ao falar em vozes marginalizadas, referimo-nos àquelas narrativas que foram empurradas para os cantos da história oficial – mulheres negras, moradores das periferias, pessoas pobres, corpos que nunca foram ouvidos, mas que sempre existiram. Evaristo não apenas dá voz a esses sujeitos, ela transforma sua vivência em arte, com a força do que ela mesma nomeia de “escrevivência” – escrever a partir da vida, com sangue, memória e afeto.
Discutir a representação das periferias na literatura vai além de um ato estético. É um compromisso ético e político. Quando a periferia entra na literatura como protagonista e não como caricatura, abre-se um espaço de reconhecimento, reparação e resistência.
Como afirma a autora: “A minha escrita é uma tentativa de inscrever, no papel, a existência de quem sempre teve que gritar para ser ouvido.” A escrita de Conceição Evaristo é, portanto, espelho – mas também flecha – lançada contra a indiferença e o apagamento.
Quem é Conceição Evaristo?
Conceição Evaristo nasceu em 1946, em uma favela da zona sul de Belo Horizonte, em um contexto marcado pela pobreza, pelo racismo e pelas limitações impostas à mulher negra. Filha de empregada doméstica, desde cedo conciliou trabalho com os estudos. Mudou-se para o Rio de Janeiro ainda jovem, onde concluiu sua formação acadêmica, tornando-se mestre em Literatura Brasileira e doutora em Literatura Comparada.
Sua trajetória desafia a lógica elitista do meio literário. Evaristo construiu sua obra a partir de uma vivência concreta, marcada pela luta cotidiana da população negra e periférica. É desse lugar que ela forja o conceito de “escrevivência” – uma escrita que nasce da experiência vivida, especialmente das mulheres negras, unindo memória, afeto, dor e resistência. Mais do que escrever sobre os marginalizados, ela escreve com eles e desde eles.
Ao longo dos anos, recebeu reconhecimento nacional e internacional. Destaque para o Prêmio Jabuti (menção honrosa), Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura e homenagens em universidades brasileiras e estrangeiras. Sua obra é referência em estudos sobre literatura negra, decolonialidade e feminismo interseccional, sendo lida em salas de aula, rodas de leitura e teses acadêmicas.
Conceição Evaristo é, antes de tudo, uma intelectual orgânica: sua escrita brota do chão da vida real, mas atinge o mais alto grau de elaboração crítica e poética. Ela deu ao Brasil um novo modo de narrar a si mesmo – pelas bordas, pelas vozes antes ignoradas.
A Periferia como Personagem
Espaço e Identidade
Na literatura de Conceição Evaristo, a periferia não é pano de fundo: é protagonista. Ela surge como espaço concreto – becos, morros, barracos – mas também como território simbólico, onde se entrelaçam dor, afeto, memória e resistência. Suas narrativas não romantizam a pobreza, mas tampouco reduzem a periferia à miséria. Há fome, há violência, sim. Mas há também solidariedade, ancestralidade e uma rica vida cultural que pulsa à margem do centro.
As relações sociais retratadas por Evaristo revelam a brutal desigualdade brasileira, com personagens que enfrentam a exclusão econômica e o racismo estrutural em seu cotidiano. Ao mesmo tempo, essas personagens constroem vínculos comunitários fortes, enfrentam o abandono com criatividade e desenvolvem estratégias de sobrevivência que se tornam também formas de resistência.
A autora apresenta a periferia como um lugar onde a identidade se forja em meio à adversidade, mas não se resume a ela. É um espaço de formação, pertencimento e potência. Nas palavras de Evaristo, é onde se aprende a “plantar dignidade em solo seco”.
Ao retratar a periferia com dignidade, sua literatura desafia o olhar estigmatizado e reducionista. Convida o leitor a reconhecer a complexidade e a riqueza desses territórios, repletos de histórias que não cabem nas estatísticas. Ao transformar a margem em centro narrativo, Conceição Evaristo mostra que a periferia é também lugar de voz, vida e criação.
As Vozes das Mulheres Negras e das Gentes Invisibilizadas
Na literatura de Conceição Evaristo, as mulheres negras são mais que personagens – são guardiãs de memória, protagonistas de resistência e narradoras de mundos que a história oficial ignorou. São mães, avós, filhas e trabalhadoras que sustentam casas, sonhos e comunidades inteiras, mesmo quando o mundo insiste em apagá-las.
Sua escrita é atravessada pela interseccionalidade, conceito que compreende como as opressões se sobrepõem: ser mulher, negra e pobre não são experiências isoladas, mas vividas de forma entrelaçada. Evaristo capta isso com sensibilidade e rigor, revelando as camadas de dor e de força que moldam suas personagens. Cada mulher em sua obra carrega marcas de um Brasil que ainda não se reconciliou com seu passado escravocrata nem com seu presente desigual.
Outro elemento central é a linguagem – não apenas o que se diz, mas como se diz. A autora incorpora expressões populares, ritmos da oralidade e elementos da ancestralidade africana em seus textos. Essa escolha estilística é, também, uma decisão política: valorizar o saber da quebrada, da favela, da roda de conversa. Como se dissesse ao leitor: a nossa fala tem valor literário e cultural.
Com isso, Evaristo desloca o eixo do poder simbólico. Ela dá centralidade às gentes invisibilizadas – aquelas que o sistema insiste em calar – e, ao fazê-lo, contribui para uma literatura que escuta, acolhe e transforma. Porque quem escreve a partir da vida, escreve para nunca mais ser apagado.
Crítica à Invisibilidade Literária e Acadêmica
Conceição Evaristo levanta, com firmeza e lucidez, uma crítica que há muito ecoa nas margens: por que as vozes negras e periféricas não estão nos currículos escolares e acadêmicos? Sua obra é, por si só, um gesto de enfrentamento a essa exclusão histórica. Ela denuncia o apagamento sistemático de autoras e autores que não pertencem à elite branca, masculina e letrada que tradicionalmente ocupou o centro da produção literária brasileira.
Romper com o cânone literário é um dos maiores desafios de sua trajetória. Ainda hoje, a literatura ensinada nas escolas muitas vezes ignora os corpos que vivem e escrevem fora dos espaços privilegiados. Evaristo mostra que a ausência dessas vozes não é um acaso, mas parte de um projeto de exclusão que marginaliza saberes, histórias e modos de vida.
Sua crítica vai além da denúncia: propõe uma reconstrução. Ao reivindicar a presença de autoras negras nas salas de aula, ela amplia o repertório simbólico das novas gerações e propõe uma literatura mais plural, verdadeira e democrática.
A elitização da literatura – que julga o valor da escrita pelo berço do autor – tem sido um dos pilares do silenciamento. Evaristo rompe essa lógica ao afirmar: “A nossa escrita não cabe no cabide da norma, ela se veste de corpo inteiro.” Sua voz não apenas questiona: ela transforma. E, com ela, o Brasil começa a ler-se por outras lentes – mais justas, mais reais, mais nossas.
Impacto Social e Político da Obra de Conceição Evaristo
A literatura de Conceição Evaristo ultrapassa o campo artístico e se inscreve como ato político. Sua obra alimenta o movimento negro e feminista, oferecendo representatividade, denúncia e reconstrução simbólica. Ao narrar vidas que historicamente foram silenciadas, ela reafirma que contar sua própria história é uma forma de resistência – e de cura.
Escolas e universidades vêm, cada vez mais, reconhecendo a importância de sua escrita. Professores utilizam seus textos para discutir racismo, desigualdade de gênero e direitos sociais. Coletivos culturais nas periferias adotam sua obra como ponto de partida para rodas de leitura, saraus e debates. Ela se tornou referência para a educação antirracista e para a valorização de saberes populares.
Evaristo também inspira uma nova geração de escritoras e escritores periféricos, que se veem nela: alguém que venceu as barreiras da exclusão, mas sem apagar suas origens. Sua trajetória demonstra que a literatura não precisa nascer nos salões, mas pode brotar nos becos, nas cozinhas, nos quintais das avós. Isso legitima outras vozes, incentiva a escrita autoral e rompe o ciclo de invisibilidade.
Ela mesma já afirmou: “Enquanto houver racismo, não haverá democracia.” Sua escrita é um convite à ação. Uma literatura que forma consciência crítica, ecoa nas ruas e planta sementes de transformação. Conceição Evaristo não escreve apenas para ser lida – ela escreve para despertar.
Por que Ler Conceição Evaristo Hoje?
Ler Conceição Evaristo é um ato urgente. Em um país ainda marcado por profundas desigualdades sociais, raciais e de gênero, sua literatura é farol e denúncia. Suas histórias nos lembram que, por trás das estatísticas da exclusão, há rostos, nomes, memórias e sonhos. Evaristo transforma essas vivências em poesia, em denúncia e em beleza – sem jamais suavizar a realidade.
Seus textos nos desafiam a olhar para o Brasil com mais empatia e menos distância social. Ao narrar o cotidiano de mulheres negras, trabalhadoras e periféricas, a autora humaniza aquilo que a sociedade insiste em desumanizar. Seu poder está na sutileza e na força com que reposiciona os invisíveis no centro da narrativa. E o leitor, ao entrar em contato com essas vozes, sai transformado.
A escrita de Evaristo também tem o dom de educar o afeto e ampliar o repertório crítico, especialmente em tempos de polarização e intolerância. Ela nos ajuda a ouvir quem raramente é ouvido – e isso, por si só, já é revolucionário.
Para quem deseja iniciar sua leitura, três obras fundamentais são:
- Ponciá Vicêncio – um mergulho na trajetória de uma mulher negra marcada por ancestralidade e ruptura;
- Olhos D’Água – contos que dilaceram e acolhem ao narrar a dor e a dignidade do cotidiano periférico;
- Insubmissas Lágrimas de Mulheres – relatos potentes de mulheres que, mesmo oprimidas, recusam o silêncio.
Ler Conceição Evaristo é enxergar o Brasil com novos olhos – mais atentos, mais sensíveis e, sobretudo, mais humanos.
Conclusão
A Literatura Como Ferramenta de Voz e Ação
A literatura de Conceição Evaristo nos ensina que narrar é também resistir. Ao dar corpo e alma às vozes marginalizadas, sua escrita rompe com o silêncio imposto pela exclusão histórica e social. Valorizar essas narrativas não é um favor – é um compromisso com a verdade do Brasil profundo, plural e muitas vezes negado.
Em tempos de apagamentos e retrocessos, ler Evaristo é um ato de urgência. Sua obra nos convoca a reconhecer as periferias não como espaço de carência, mas de potência, saber e criação. Mulheres negras, trabalhadoras, avós, meninas e anônimas tornam-se protagonistas de mundos inteiros, até então ignorados pelo cânone literário tradicional.
Mais do que leitura, sua literatura exige ação. Cabe ao leitor questionar seus próprios privilégios, ao professor incluir essas vozes nos currículos e ao cidadão defender uma cultura mais inclusiva e representativa. É na sala de aula, nas rodas de conversa, nas redes sociais e nas prateleiras de livrarias que essa transformação começa.
Como disse a própria Evaristo: “Nossos passos vêm de longe.” Cabe a nós garantir que esses passos sigam firmes, visíveis e ouvidos. Que Conceição Evaristo não seja exceção, mas abertura de caminho para tantas outras vozes que ainda esperam ser lidas – e reconhecidas.
Referências e Indicações de Leitura
Para aprofundar sua compreensão sobre Conceição Evaristo e o universo das vozes marginalizadas na literatura brasileira, seguem indicações essenciais:
Obras de Conceição Evaristo:
- Olhos D’Água (2014) – Contos que revelam a força e a dor da vivência periférica.
- Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011) – Narrativas de resistência e emoção de mulheres invisibilizadas.
- Ponciá Vicêncio (2003) – Romance que entrelaça memória, identidade e ancestralidade.
- Becos da Memória (2006) – Uma homenagem à favela e suas memórias coletivas.
Artigos e Entrevistas:
- Evaristo, C. “A escrevivência e seus subtextos.” In: Revista Letras, UFMG – Essencial para entender sua proposta estética.
- Entrevista no Roda Viva (TV Cultura) – Disponível no YouTube, traz reflexões poderosas sobre literatura, raça e Brasil.
- Artigos acadêmicos nas revistas Estudos Feministas e Cadernos de Letras da UFF.
Plataformas e coletivos literários periféricos:
- Literatura Periférica – Conteúdo em redes sociais e eventos.
- Sarau da Cooperifa – Movimento literário e cultural de resistência.
- Escrevivências – Projeto dedicado à leitura crítica da obra de Evaristo.
Essas leituras e espaços ampliam horizontes e mantêm viva a chama da representatividade na literatura.